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Incentivos às arbitragens com a Administração Pública


Objetivo é gerar um ambiente de confiança e maior estabilidade para a propagação do instituto e de sua prática no Brasil

O Comitê Temático de Arbitragem do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados – CESA publicou o Anuário da Arbitragem no Brasil, referente ao ano de 2017. Esta publicação ofereceu à comunidade jurídica pátria um “mapeamento de nossas principais instituições arbitrais e um diagnóstico dos procedimentos arbitrais que se encontram sob sua administração” (CESA, dez. 2018).

Extrai-se das estatísticas que dos 919 procedimentos arbitrais em andamento nas principais instituições arbitrais nacionais e da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI), 94 deles envolvem entes da Administração Pública brasileira, direta ou indireta.1

Trata-se de percentual bastante expressivo, sobretudo quando consideramos que a problemática envolvendo a (ausência de) autorização legal para que Administração Pública pudesse legitimamente optar pela arbitragem foi resolvida apenas em 2015, com a Reforma da Lei Brasileira de Arbitragem-LBA (Lei federal nº 13.129/15). De lá para cá, entes federativos e entes da Administração Indireta (autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas) de fato constituem-se em novos e poderosos players no contexto da arbitragem brasileira, sobretudo no campo dos complexos contratos de infraestruturas rodoviária, aeroportuária, ferroviária, petrolífera, e similares.

Estes números merecem ser conhecidos e analisados com atenção, pois não somente os entes administrativos acabam por impulsionar o mercado de arbitragem nacional, como a sua participação nas arbitragens enseja uma série de interações, compatibilizações e adequações entre o instituto da arbitragem e o regime jurídico-administrativo a que se subordinam os órgãos e entes da Administração Pública.

Ora, nesse cenário de forte promoção das arbitragens envolvendo o Poder Público, cumpre refletir acerca dos incentivos atualmente existentes no ordenamento jurídico brasileiro e nos sistemas administrativos da União Federal, Estados e Municípios que estimulam o seu bom uso, gerando um ambiente de confiança e de maior estabilidade para a propagação do instituto e de sua prática.

No tocante aos incentivos normativos, a legislação brasileira hoje é francamente favorável ao emprego mais corrente da arbitragem pela Administração pública, tendo por objeto litígios contratuais dos quais os entes públicos sejam parte. Referimo-nos tanto à atual redação da LBA, que em seu art.1º, §1º, explicitamente franqueia aos entes federativos e administrativos a opção pela arbitragem, às leis de modelagens de contratos públicos – Lei de Concessões, Lei de PPPs – e às leis de setores regulados específicos, a exemplo do art. 43, inc. X, da Lei federal nº 9.478/97 (Oil & Gas).

Ademais, a Lei federal nº 13.448/17 abertamente inclina-se à arbitragem nos contratos de parceria nas áreas rodoviária, portuária e aeroportuária (art. 31), sendo que em casos de relicitação destes contratos a arbitragem se faz praticamente obrigatória (art. 15, inc. III).2

Ainda no plano normativo, uma nova tendência é a disseminação de Regulamentos de Arbitragem pelos entes públicos, os quais estabelecem regras, parâmetros e critérios mais bem definidos para o bom manejo da arbitragem no setor público.

Encontramos estes regulamentos configurados por Decretos do Poder Executivo – válidos para a Administração em geral – caso do Decreto nº 46.245/18, do Estado do Rio de Janeiro.3 Igualmente, existem Decretos de foco mais especializado, como o Decreto nº 8.465/15, que regulamenta a arbitragem no setor portuário. Ademais, muitas Agências Reguladoras também passaram a adotar Regulamentos de Arbitragem, a exemplo da Resolução nº 5.845, de 14.05.2019, que dispõe sobre as regras procedimentais para a autocomposição e a arbitragem no âmbito da ANTT.

Tais regulamentos acabam tendo múltiplas funções, que vão desde a compreensão específica do órgão ou entidade, sobre a extensão e limites da arbitragem em seu âmbito administrativo, até a veiculação de regras sobre a escolha da Câmara Arbitral, indicação de árbitros e formação do Tribunal Arbitral, pagamentos de custas, etc.

O importante é que a conjugação das Leis e dos Regulamentos de Arbitragem reforçam as bases de segurança jurídica e estabilidade relacional para todas as partes envolvidas no processo arbitral, o que por si só é altamente positivo em termos de fomento à arbitragem com o Poder Público, sobretudo considerando o estágio ainda inicial da experiência desses órgãos com o instituto da arbitragem, gerando um ambiente mais estimulante para a ampliação da arbitragem com a Administração Pública.

No que diz respeito aos incentivos de gestão pública, destaque para que a opção pela arbitragem consista em resultado de uma decisão estratégica tomada em instância administrativa competente e especializada do ente público ou da entidade da Administração Indireta.

É que a arbitragem como método de solução de litígios da esfera pública geralmente identifica-se melhor com contratos administrativos de alta complexidade, que adotem determinadas modelagens jurídicas (PPPs, p. ex.), cujos conflitos exigirão uma resolução altamente técnica, célere e especializada.4 Esta escolha estratégica pela arbitragem, portanto, tem natureza de decisão administrativa técnica a ser tomada por todos os órgãos públicos competentes, e é indicado que seja motivada a partir de prévio estudo de impacto que avalie adequadamente ganhos de eficiência e de influência positiva nos custos de transação do contrato em espécie, gerados pelo uso da arbitragem.

Nesse sentido, é a minuta de proposta de Decreto de Regulamento de Arbitragem em discussão na PGE-SP, a qual alude em seu artigo 3º à necessidade de se observar “vantagens do uso da arbitragem”, previamente à decisão técnico-administrativa pela arbitragem. Eis uma boa prática de gestão pública que merece ser amplificada, pois certamente levará a Administração Pública a melhor desenvolver as potencialidades da arbitragem, o que decididamente impactará positivamente na execução do contrato administrativo em si.

Por via de consequência, deve-se atentar para os incentivos de capacitação e de especialização da advocacia pública, uma vez que caberá aos advogados públicos tomarem uma série de providências e ações estruturadas para a real implementação dos compromissos arbitrais firmados pelos entes públicos. Nessa linha, desde 2015 a PGE-SP pioneiramente instituiu a Assistência de Arbitragens, integrada à área do seu Contencioso Geral, assumindo a representação direta do Estado de São Paulo em processos arbitrais. Mais recentemente, junto à Consultoria-Geral da União, foi instituído o Núcleo Especializado em Arbitragem (NEA), unidade responsável pelas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos e de contencioso arbitral em que a União seja parte ou interessada (Portaria nº 320, de 13.06.2019).

Incentivos à atuação ética na arbitragem são igualmente bem-vindos, tanto em relação aos atores públicos quanto aos privados,5 sobretudo considerando que muitas legislações estaduais e municipais permitem aos advogados públicos exercerem a advocacia privada, autorizando um trânsito profissional que muitas vezes são facilitadores da ocorrência de conflitos de interesses ou tráfico de influência. Assim, merece homenagens a Resolução nº 1, de 19.11.2018, da Comissão de Ética da AGU, segundo a qual “configura-se situação de conflito de interesses (…) o exercício por membro da AGU das atividades privadas de mediação ou conciliação, judicial ou extrajudicial, arbitragem ou compliance” (art. 2º).

Incentivos à adoção de boas práticas também importam, com especial destaque à necessidade do uso de técnicas adequadas de redação da convenção de arbitragem, seja a cláusula compromissória, seja o compromisso arbitral. Com efeito, é a cláusula arbitral que expressará e representará o resultado da opção estratégica levada a efeito pelos entes federados e entes administrativos que, de modo consensual com outro ente público ou com uma empresa privada, decidem pela arbitragem como método heterocompositivo de resolução de conflitos oriundos de contratos firmados por estas partes.

Particularmente, assim como Felipe ESTEFAM,6 inclino-me à aplicação do “princípio da especificação material da arbitragem”, o qual haverá de ser concretizado pela via da boa e explícita redação da cláusula arbitral, por meio de um melhor detalhamento e listagem – em minha opinião mesmo que de índole exemplificativa – das hipóteses em que a arbitragem de fato incidirá na prática. Trata-se de necessária densificação material de base contratual, a qual traz consigo inúmeros benefícios e vantagens a todos os atores envolvidos na arbitragem que eventualmente venha a ser instaurada – e não somente para as partes do contrato. Em outras palavras, a cláusula compromissória precisa ser bem escrita e suficientemente detalhada, com impactos positivos sobre a governança do contrato público em que ela resta inserida.

Incentivos jurisprudenciais são determinantes para fins de segurança jurídica e ampliação do bom emprego da arbitragem pelo Poder Público. No caso brasileiro, os entendimentos jurisprudenciais e sumulares do Superior Tribunal de Justiça-STJ vêm contribuindo significativamente para o fortalecimento da arbitragem em geral, mais especificamente para a propagação da arbitragem com entes da Administração Pública.

Destaque para recentes pronunciamentos tomados nos CC nº 139.519-RJ (1ª Seção) e CC nº 151.130-SP (2ª Seção), os quais reforçam o princípio do Kompetenz-kompetenz, em matéria envolvendo litígios administrativos, segundo o qual cada árbitro ou Tribunal Arbitral é competente para analisar sua própria competência, impedindo a interferência do Judiciário frente aos desígnios e curso natural da arbitragem. Também a edição de Jurisprudência em Teses nº 122 do STJ incluiu entendimento segundo o qual “não existe óbice legal na estipulação da arbitragem pelo poder público, notadamente pelas sociedades de economia mista, para a resolução de conflitos relacionados a direitos disponíveis”.

Nesse diapasão, cumpre colocar em relevo os Enunciados do Conselho da Justiça Federal-CJF, aprovados na I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios (2016), pois muitos deles tiveram como objeto matéria envolvendo arbitragem e Administração Pública.

Por fim, os incentivos das Câmaras Arbitrais são absolutamente relevantes, pois irão demonstrar o preparo e a especialização das instituições arbitrais para lidarem adequadamente com os litígios administrativos em seus campos de atuação, atraindo positivamente a atenção dos entes públicos.

Tais incentivos podem ser das mais diversas ordens, como (i) regras sobre arbitragem com o Poder Público inseridas em seus regulamentos (p. ex. Regulamento CAMARB, versão 09/2017, item XII “Dos procedimentos com a participação da Administração Pública”), (ii) atos normativos específicos sobre o tema (p.ex. Resoluções Administrativas nº 09/2014 e 15/2016 do CAM-CCBC) e, mormente em face da publicidade das arbitragens com a Administração Pública (LBA, art. 2º, §3º), (iii) Ementários com decisões arbitrais proferidas no âmbito das Câmaras (p.ex. Câmara de Arbitragem do Mercado-BOVESPA, 06.12.2018), a partir dos quais passa-se inclusive a melhor conhecer o trabalho técnico desenvolvido pelos árbitros e Tribunais Arbitrais que atuam em procedimentos que têm por objeto litígios administrativos e (iv) melhor gerenciamento – preferencialmente digitalizado – dos documentos considerados públicos em uma arbitragem que envolva a Administração,7 e que por isso possam ser franqueados no próprio site da instituição arbitral, economizando-se tempo e evitando gastos desnecessários na organização dessas informações.

Nesse quadrante, crucial ainda é que para as Câmaras Arbitrais que adotam listas de árbitros, que nelas estejam inseridos árbitros especialistas em direito público, como uma forma de minimizar e até obstar o caráter generalista que muitos Tribunais Arbitrais vêm demonstrando em matéria do julgamento de litígios administrativos, o que em verdade revela-se contraproducente e serve como desincentivo para os entes públicos optarem por tais Câmaras Arbitrais em suas Convenções Arbitrais.

O tema da arbitragem com a Administração Pública representa a um só tempo assunto de sofisticada inovação jurídica e de difícil investigação científica,8 a ser compreendido e desenvolvido à luz da novíssima governança dos contratos públicos, que obviamente clamam por métodos de prevenção e de resolução de conflitos para além do Judiciário, e portanto mais adequados inclusive às diretivas de Justiça Multiportas que o Novo Código de Processo Civil-NCPC inaugurou em 2015 (especialmente a partir do seu art. 3º).

Ao discorrer sobre os incentivos à arbitragem com a Administração Pública, podemos concluir que tão importante quanto conhecê-los é saber identificar os “desincentivos”,9 na esperança de se poder evitá-los e assim não fazer com que a própria arbitragem – compreendida como boa opção de método heterocompositivo de resolução de conflitos administrativos – corra graves e indevidos riscos, a ponto de deixar de ser considerada como uma viável e adequada alternativa ao processo judicial.

Conforme enfatizamos acima, ao fim e ao cabo, o que os incentivos às arbitragens com a Administração Pública pretendem promover, para além de estimularem o seu bom uso, é gerar um ambiente de confiança e de maior estabilidade para a propagação do instituto e de sua prática no Brasil.

1- http://www.cesa.org.br/media/files/CESAAnuariodaArbitragem2017.pdf

2- “Art. 15. A relicitação do contrato de parceria será condicionada à celebração de termo aditivo com o atual contratado, do qual constarão, entre outros elementos julgados pertinentes pelo órgão ou pela entidade competente: (…) III – o compromisso arbitral entre as partes com previsão de submissão, à arbitragem ou a outro mecanismo privado de resolução de conflitos admitido na legislação aplicável, das questões que envolvam o cálculo das indenizações pelo órgão ou pela entidade competente, relativamente aos procedimentos estabelecidos por esta Lei”.

3- Com este espectro e abrangência, há uma expectativa em torno da edição de um Decreto federal que trará regramento geral sobre a arbitragem envolvendo a União Federal.

4- Sobre o tema, cf. JUNQUEIRA, André Rodrigues. Arbitragem nas Parcerias Público-Privadas: um estudo de caso. Belo Horizonte: Fórum, 2019. No prelo.

5- De aplicação corrente e global, embora não cogentes, sobre o tema existem as Diretrizes da International Bar Association, IBA Guidelines, sobre Conflitos de Interesses em Arbitragem Internacional, em sua versão de 2014, as quais veiculam uma série de regras e condutas que buscam fazer prevalecer a imparcialidade e a independência de árbitros e demais atores do sistema arbitral. Cf. https://www.ibanet.org/Document/Default.aspx?DocumentUid=e2fe5e72-eb14-4bba-b10d-d33dafee8918

6- ESTEFAM, Felipe. Cláusula arbitral e Administração Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. No prelo.

7- Sugestão discutida com o Dr. André Rodrigues Junqueira, Procurador do Estado de SP e atual Coordenador da Assistência de Arbitragens da PGE-SP, a quem tive o prazer de orientar no Mestrado em Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP.

8- Para aprofundar o tema, cf. OLIVEIRA, Gustavo Justino de. A Agenda da Arbitragem com a Administração Pública: “mais do mesmo” ou há espaço para inovação?. In: CONTRAPONTO JURÍDICO: posicionamentos divergentes sobre grandes temas do Direito. São Paulo: RT, 2018. p. 29-46.

9- Embora bem intencionada em seus fins, a Lei Complementar nº 144, de 24.07.2018, do Estado de Goiás, ao instituir a Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Administração Estadual-CCMA – vinculada à estrutura organizacional da Procuradoria-Geral do Estado – veicula inúmeras regras de duvidosa constitucionalidade, sobretudo por trazer para dentro da estrutura da administração pública estadual o exercício da função arbitral, a qual reconhecidamente detém natureza jurisdicional – e jamais administrativa! – conforme já reconhecido pelo STF na Jurisprudência em Teses n. 122, item 9 (“A atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem possui natureza jurisdicional, o que torna possível a existência de conflito de competência entre os juízos estatal e arbitral, cabendo ao Superior Tribunal de Justiça-STJ o seu julgamento”). Salvo melhor juízo, neste aspecto específico, a lei goiana representa um desincentivo ao uso adequado da arbitragem no setor público, e merece ser declarada inconstitucional.

Fonte: JOTA


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