Direito

A extinção de conselhos e fóruns participativos pelo Decreto nº 9.759 de 11.04.19


Nos dias 10 a 13 de setembro de 2019, Porto Alegre sediará o IV Encontro Internacional de Participação, Democracia e Políticas Públicas (PDPP), cujo escopo principal é “dar continuidade a esforços acadêmicos voltados à consolidação do campo de estudos sobre a participação política em suas diversas modalidades – associativismo, protestos, movimentos sociais, canais institucionais, extraparlamentares, eleitorais – e sua relação com as políticas públicas e o aprofundamento da democracia”.

Tive a honra e felicidade de ter uma proposta de trabalho selecionada para o evento, no Simpósio Temático 15 intitulado Representação, Participação e Democracia: a interação entre os conceitos, atores e instituições, sob a coordenação dos cientistas políticos Adrian Gurza Lavalle (USP) e Debora Rezende de Almeida (UnB).¹ O tema versava sobre “o lugar e o espaço da participação popular no Brasil de hoje: a fragilização da participação no contexto de (re)ascensão do liberalismo econômico e da busca pela implantação de uma Agenda Social Conservadora”.

No atual contexto político-institucional do Brasil, a proeminência do espaço virtual como principal via de participação popular – democracia direta digital – aliada às desenfreadas fake news, que tomam conta das mídias sociais, geram muita apreensão, sobretudo, quando consideramos o paralelo enfraquecimento dos tradicionais e efetivos instrumentos de participação largamente empregados pela gestão pública brasileira no cenário pós-Constituição de 1988, pelos diferentes governos de diferentes partidos.

Com efeito, exemplo real dessa preocupação pode ser concretamente observada com a edição do decreto federal n. 9.759, de 11.04.19, que “extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração federal direta, autárquica e fundacional”, os quais serão extintos a partir de 28 de junho de 2019.

De sua exposição de motivos, constata-se que as justificativas para a extinção dessas Instâncias Participativas-IPs se relacionam com desburocratização, simplificação administrativa, desregulamentação e contenção de gastos e despesas. No entanto, explicitamente reconheceu-se que uma das suas principais motivações foi o de conter a atuação de Grupos de Pressão, “tanto internos quanto externos à administração, que se utilizam de colegiados, com composição e modo de ação direcionados, para tentar emplacar pleitos que não estão conforme a linha das autoridades eleitas democraticamente”.

Ora, tal justificativa revela-se resultado de um olhar míope e equivocado sobre o que são, de fato e de direito, instrumentos e instituições participativas, pois em nenhum momento da excepcional trajetória emancipatória desses mecanismos na recente redemocratização brasileira se pretendeu contrapor – ou mesmo substituir – a representação política pela participação popular na gestão pública ou pelo controle social que muitas dessas instâncias acabam também por concretizar na estrutura estatal.

A novidadeira realidade em que política e sociedade brasileiras se encontram submergidas traz consigo preocupações quanto à manutenção e aprimoramento do Estado Democrático de Direito – riscos de desdemocratização – postas as incertezas e as inconsistências daquilo que, no atual contexto político-institucional, provavelmente tende a ocupar o lugar da participação popular: mídias e redes sociais como a “nova ágora”, bem como a confusão dos conteúdos postados em tais locais, sobre determinado tema ou proposta política, com os resultados da opinião pública.

Diante dessa problemática incandescente, temos de procurar compreender e investigar as relações entre a participação popular, o controle social e a democracia na atualidade brasileira, propondo possíveis soluções para que esse falso antagonismo – felizmente ainda em estágio inicial – não progrida para ameaças ao Estado Democrático de Direito, acarretadas por suposta atrofia da participação popular e do controle social, no âmbito político e da gestão pública brasileira.

A onda de conservadorismo que atingiu diversas partes do globo, alcançou também o território brasileiro, corporificando-se por meio da eleição de Bolsonaro (2019-2022), do Partido Social Liberal-PSL, ao cargo de Presidente da República. Uma das maiores bandeiras de campanha do Presidente eleito foi a promessa da implantação de um contexto de Lei e Ordem no Brasil, contrapondo-se ao modelo que vinha sendo adotado pelos governos anteriores, os quais – na opinião das novas lideranças políticas – eram aparentemente mais permissivos quanto a diversos aspectos negativos, a exemplo de crimes tal como a corrupção, ou imoralidades, a exemplo da deturpação do conceito tradicional de família.

Ademais, também é um dos nortes da “nova direita” a proposta de um novo modelo econômico reducionista do Estado – mais entrosado com o chamado liberalismo – também contraposto ao modelo anteriormente adotado, que apostava que um eficiente projeto de País englobava um Estado hipertrofiado e repleto de atribuições, voltado a um desenvolvimento socioeconômico emancipatório.

Assim, a inédita realidade política que paira sobre o Brasil, a qual se pauta por uma conjunção de liberalismo econômico e conservadorismo social, abarca uma grande dúvida sobre o lugar e o espaço da participação social e das instituições participativas na estrutura do Estado.

Na lição de Adrian Gurza Lavalle2, a participação pode ser definida como, “a um tempo só, categoria nativa da prática política de atores sociais, categoria teórica da teoria democrática com pesos variáveis segundo as vertentes teóricas e os autores, e procedimento institucionalizado com funções delimitadas por leis e disposições regimentais”. Em oportunidade anterior,3 ao discorrer sobre a relação da administração pública democrática e a efetivação de direitos fundamentais, defendi que a participação na esfera administrativa, especialmente no âmbito de implantação de políticas públicas, envolve enorme relevância na busca pela efetivação de direitos fundamentais, o que é essencial para o aperfeiçoamento da ação administrativa, especialmente no que tange à sua implementação, execução e posteriores impactos.

Todavia, a feição da participação popular na esfera pública vem mudando radicalmente, inovando-se a partir do desenvolvimento do mundo digital, tendo a internet se tornado uma verdadeira “ágora”, abrangendo palanques e púlpitos virtuais nos quais se dissipam ideias sem qualquer controle ou contenção de conteúdo, o que muitos tem denominado “democracia direta digital”.

Notório exemplo pode ser demonstrado na própria participação de Jair Bolsonaro no pleito eleitoral, o qual, no primeiro turno, com somente alguns segundos de horário eleitoral nas mídias tradicionais, alcançou 49.276.990 votos (46,03%), enquanto Geraldo Alckmin (Partido da Social Democracia Brasileira), com o maior horário eleitoral da rodada (praticamente cinco minutos), alcançou somente 5.096.744 votos (4,76%). O fato reportado demonstra que a rede mundial de computadores, especificamente as redes sociais, provavelmente tem muito a ver com o crescimento da pauta protetiva de costumes, em detrimento dos movimentos pró-direitos.4

Em verdade, a internet, muito em razão da liberdade existente em seu espaço, tornou-se a válvula de escape para diversos grupos radicais, como neofascistas e outros de extrema direita, até então silenciados nas mídias tradicionais e mais atuantes na deep web. São esses grupos que se utilizam de instrumentos como as fake news para irradiar temor e ódio pela sociedade, instigando as pessoas a externalizarem opiniões de cunho conservador e autoritário, direcionadas ao apoio de um determinado modelo de Estado que, aparentemente, não pretende privilegiar a manutenção de canais de diálogos com a sociedade como um todo, mas somente com um séquito de apoiadores.

Com efeito, as ideias de cunho conservador disseminadas pelas mídias sociais, por vezes, têm gerado contradições no Brasil de hoje.

Exemplificando, grande parte do eleitorado de Bolsonaro não enxerga com bons olhos programas sociais como o “Bolsa Família” ou “Minha Casa, Minha Vida”, desferindo-lhes diversas críticas, tais como a sua contribuição para o não desenvolvimento econômico do Brasil, em razão do vultoso gasto público neles envolvido. De outro lado, políticas sociais de perfil não identitário começam a ser gestadas no núcleo duro do Governo, como a sinalização da Pastora Damares Alves, à frente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que pretende aprovar o Estatuto do Nascituro para minorar as hipóteses de prática de aborto e, ainda, oferecer para as mulheres com gravidez fruto de estupro, uma espécie de auxílio financeiro pago pelo Estado, a fim de coibir, mesmo em tais hipóteses, a interrupção da gestação.5 Estas “novas políticas” parecem receber maior apoio do eleitorado vencedor nas eleições presidenciais de 2018, justamente pelo fato de não ter nenhum perfil identitário.

Nessa linha, o ambiente virtual, compreendido como “o” espaço de debate político, participação popular e controle social, mostra-se preocupante e debilitador da democracia, posta a alienação e a desinformação por parte daqueles que utilizam a internet como fonte exclusiva ou majoritária de obtenção de informações.

Pior do que isso, a disseminação de notícias falsas na internet com a intenção predominante de induzir o emissário a erro, debilita a participação popular e, consequentemente, a própria democracia e seus controles sociais. Abre espaço para emergência de estruturas de governo, a um só tempo, desdemocratizantes e antidemocráticas, de modo que uma suposta plenitude de liberdade de expressão pode se converter, rapidamente, em um poço de degradação das conquistas históricas que resultaram nos preceitos fundamentais da Constituição Federal de 1988 e no próprio Estado Democrático de Direito.

Para que um mau uso do meio virtual não venha a tornar desvairada a produção de divulgação em massa de conteúdos inverídicos, faz-se necessária uma regulamentação mais ostensiva do ambiente eletrônico, a fim de coibir fake news, questão que já se mostra em pauta no âmbito do Poder Legislativo Federal, tal como se observa nos Projetos de Lei nº 8.592/20176, de autoria do Deputado Federal Jorge Corte Real (PTB-PE) e nº 7.604/20177, de autoria do Deputado Federal Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR).

O estudo e análise minuciosa da presente temática se tornam indispensáveis, sobretudo, quando se observa certa proatividade do Governo em exercício para enfraquecer mecanismos efetivos de participação popular. Com isso, passa a ser necessário defender o lugar e o espaço da participação popular na atual conjuntura do Brasil, em nome da continuidade da democracia, de modo a elidir a crescente substituição errônea dos efetivos instrumentos de participação popular no Estado pelas mídias sociais, uma vez que a atuação e o conteúdo emanado dessas redes eletrônicas jamais poderão ser assimilados ou equiparados à atuação e conteúdo propagados pela opinião pública.

A conjunção de liberalismo econômico com conservadorismo social na atualidade brasileira vem representando ameaças concretas de forte distorção do exercício e da garantia constitucional da participação popular, a qual pode desencadear processos de desdemocratização e danos efetivos à democracia, mormente se não forem fixados limites nesta “nova ágora” que o ambiente virtual vem se tornando.

Além disso, deve-se evitar que as tradicionais e legítimas instituições participativas que decorrem diretamente da Constituição de 1988 (as quais não são e nunca foram monopólio de uma dada corrente ou partido político e que, obviamente, também têm seus defeitos e desafios) sejam enfraquecidas por políticos que parecem não mensurar adequadamente a importância histórica da atuação da vontade soberana do povo, em prol dos rumos do Estado, para além da representatividade política.

Precisamos continuar a investigar e a proteger as relações entre participação popular, representação política e controle social na democracia brasileira, de modo a analisar suas contínuas e dinâmicas interações. Este tema há de estar na Agenda Pública em posição de destaque, para que seja possível propor soluções para que esta fragilização da participação – ainda em estágio inicial – não progrida para um estado de ameaça e larga desdemocratização do Estado Democrático de Direito no país, capitaneada por uma comunicação pública distorcida e predomínio opinativo das redes sociais e fake news, que jamais poderão representar o que até aqui conhecemos como opinião pública e vontade popular.

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1 Agradeço ao coautor da proposta Eduardo Dumond Araújo, pelas reflexões e ponderações para a formatação final do abstract.

2 LAVALLE, Adrian Gurza. Participação – Valor, Utilidade, Efeitos e Causa. In: PIRES, Roberto (org.). “A efetividade das instituições participativas no Brasil: Perspectivas, abordagens e estratégias de avaliação”. Brasília: IPEA. (no prelo)

3OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Administração pública democrática e efetivação de direitos fundamentais. “Fórum administrativo: direito público”. Belo Horizonte, v. 8, n. 88 jun. 2008.

4 ttps://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/apuracao/presidente.ghtml

5 https://exame.abril.com.br/brasil/damares-alves-defende-bolsa-a-mulheres-estupradas/

6http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=D3F626158AEB6091632DE41D47EFEA51.proposicoesWebExterno2?codteor=1597578&filename=PL+8592/2017

7 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1556903&filename=PL+7604/2017

Fonte: JOTA


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