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A lista de Janot e o foro privilegiado


A lista de Janot e o foro privilegiado

Em tempos de Lava Jato, o que era para ser exceção, virou a regra
Gustavo Justino de Oliveira

Foto: Carlos Humberto/SCO/STF
A “Lista de Janot” encaminhada ao STF, STJ e a outras instâncias do Judiciário mais uma vez expõe a difícil problemática do foro privilegiado por prerrogativa de função. O foro privilegiado – assegurado pela Constituição de 1988 a parlamentares, mandatários e autoridades do Poder Executivo – não está circunscrito a crimes praticados durante o exercício do cargo, podendo decorrer de delitos cometidos anteriormente ao início do seu exercício.

O Texto Constitucional é explícito no sentido de estabelecer que o “foro privilegiado” trata-se de imunidade de caráter processual, a qual visa a garantir o livre exercício do cargo ou do mandato em si e jamais a proteger aquele que o exerce. Isso significa dizer que enquanto Senadores, Deputados, Ministros de Estado, Prefeitos, Governadores e o próprio Presidente da República estejam no exercício legítimo de seus cargos e mandatos, eventuais inquéritos e ações penais terão o seu curso nos Tribunais competentes sinalizados pela Lei Maior, não importando o momentum de cometimento do crime.

Por isso, o fator determinante para o gozo da imunidade constitucional que leva ao foro privilegiado é o exercício do cargo ou do mandato. No caso do Presidente da República, o art. 86, §4º, da Constituição Federal preceitua que na vigência do seu mandato, não poderá ele ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções. Mesmo esta cláusula de exclusão de responsabilidade, de acordo com jurisprudência do STF, não tem o condão de inviabilizar a instauração de procedimento meramente investigatório, “destinado a formar ou a preservar a base probatória para uma eventual e futura demanda contra o Chefe do Poder Executivo” (Inq. 672-DF, Min. Celso de Mello, Pleno, DJU de 16.04.93; Pet. 5.569-DF, Min. Teori Zavascki, j. em 15.05.2015).

De maneira análoga, a depender de previsão nas Constituição Estaduais, os Governadores de Estado também poderão ser investigados pelo STJ, ainda que instauração de posterior processo criminal dependa de prévia autorização das respectivas Assembleias Legislativas, porém valendo esta condição unicamente enquanto o Chefe do Executivo estadual estiver no gozo do seu mandato.

Além disso, o Texto Constitucional estabelece que eventual denúncia contra Senadores e Deputados Federais, por crime ocorrido após a diplomação, deverá ser pelo STF cientificada à Casa respectiva, a qual, “por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação” (art. 53, §3º). Entretanto, ainda que consumada a sustação, nos termos do art. 53, §5º, esta suspenderá a prescrição, “enquanto durar o mandato”.

Esta previsão constitucional leva-nos a distinguir duas hipóteses. Se o agora parlamentar encontrava-se sendo investigado por notícias crimes ou respondendo a processos criminais por fatos ocorridos antes de sua diplomação, haverá o deslocamento natural destes procedimentos para o STF; cessado o mandato por quaisquer razões – em situações de não reeleição, por exemplo – finaliza-se igualmente a competência do STF, retornando a competência investigativa e persecutória para as instâncias inferiores. Não é outra a orientação do STF, cuja jurisprudência dominante é no sentido de que, cessado o mandato parlamentar não subsistirá a competência do Tribunal para processar e julgar, originariamente, ação penal contra membro do Congresso Nacional.

Todavia, o Excelso Pretório instituiu uma importante distinção aqui: se ocorrer renúncia de parlamentar, após o fim da instrução do processo criminal em curso no STF, a cessação do mandato não ultima esta competência originária (AP606 QO – MG, Min. Roberto Barroso, 1ª T., DJU 18.09.2014). Trata-se de hipótese excepcional de ulterioridade de prerrogativa de foro. Se a renúncia ocorrer antes de finda a instrução processual criminal, desloca-se a competência para a instância inferior.

Uma última hipótese há de ser lembrada, e que ainda provoca muita discussão na Corte Suprema. Na AP 396-RO, em casos de abuso de direito e fraude processual – o parlamentar renunciara às vésperas do julgamento no STF – prevalece a competência originária do Tribunal, pois tratar-se-ia de subterfúgio inescusável do interessado, destinado a impedir um eventual resultado contrário a seus interesses (Min. Carmen Lúcia, Pleno, DJU 28.04.2011).

Finalmente, corroborando nosso posicionamento, insta asseverar que em 1999 o STF cancelou a Súmula n. 394, a qual enunciava que “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício” (Inq 687 QO – SP, Min. Sydney Sanches, Pleno, j. 25.08.1999).

A Corte Suprema é firme no sentido de que o foro privilegiado por prerrogativa de função não há de ser restrito a delitos cometidos no transcurso do exercício do cargo ou mandato. Esta imunidade é de caráter processual e objetivo, podendo abranger crimes praticados antes do exercício do cargo ou mandato, mas ocorre exclusivamente em função do seu exercício, em regra cessando – apesar das exceções apontadas – quando do término definitivo do exercício dos cargos ou mandatos.

A partir da famigerada “Lista de Janot”, dificilmente os Tribunais Superiores terão capacidade de gestão para instaurar e impulsionar adequadamente um número elevado de inquéritos contra agentes políticos.

Ao estipular o foro privilegiado em nosso ordenamento, o Constituinte pretendia proteger o exercício do mandato, cargo ou função, e certamente entendeu que a instauração de processo investigativos e criminais seriam a exceção do mundo da política, pois esta pautar-se-ia por valores e parâmetros de ética pública igualmente protegidos pelo Texto Constitucional. Entretanto, em tempos de Lava-Jato, o que era para ser exceção, virou a regra. E justamente por isso, passou-se da hora de ser repensada a função e os limites do foro privilegiado de agentes políticos no Brasil.

Gustavo Justino de Oliveira – Professor Doutor de Direito Administrativo na USP. Advogado e consultor jurídico especialista em Direito Público. www.justinodeoliveira.com.br

JOTA – 12/04/17 – https://goo.gl/A45lKW


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