Direito

ADMINISTRAÇÃO DIGITAL, INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E NOVAS TECNOLOGIAS JURÍDICAS:a necessidade de atualização do Direito Administrativo frente aos avanços tecnológicos no mundo pós-pandemia


Este prelúdio de século 21 já nos desafiava a refletir sobre a intensificação do uso das novas tecnologias da informação/comunicação no setor público, estimulando o Direito Administrativo a se reposicionar frente aos desafios contemporâneos que a inovação tecnológica impõe no nosso dia a dia da Administração Pública. Em 2010, registrei que este “repensar o Direito” é sobretudo uma tarefa do i-jurista, o jurista que atua ativamente nos cenários disruptivos que hoje avançam na velocidade da luz, aquele jurista que “deve cada vez mais exercer o seu papel de líder e de agente transformador, notadamente no plano jurídico e legal, fomentando mudanças e gerando valor e conhecimento para a sociedade como um todo” (Direito Administrativo Pragmático, 2020: 57).

Parece-me que se este em si já era um tema incandescente, sua importância foi sobejamente alavancada pelas consequências que a Pandemia COVID-19 têm provocado na vida de todos e, especialmente no que diz respeito ao uso da tecnologia da informação pelas instituições públicas (e privadas), indubitável que houve uma aceleração considerável na necessidade de se internalizar e incorporar inovações tecnológicas para superar estes impactos pandêmicos negativos.

De outro lado, é certo que existe aqui também uma monumental “janela de oportunidades” que, se bem aproveitada, pode fazer com que o Direito Administrativo possa mais rapidamente assimilar e se adaptar a esta nova realidade, que praticamente acaba por fazer a fusão definitiva do presencial com o virtual no cotidiano das instituições; dois espaços que até aqui caminhavam separadamente, porém passam a estar integrados e representar um fenômeno híbrido e indissociável. Mais do que isso, chegou o tempo da Administração Digital, aquela que permanece à disposição da sociedade 24 horas por dia, 7 dias por semana: é a Administração pública que não pode parar, que não pode dormir, que precisa ser célere mas atuar com exímia qualidade para atender às necessidades da coletividade.

Portanto, tratar de inovação tecnológica no mundo pós-pandemia não mais é enfrentar a temática da tecnologia de modo novidadeiro, excepcional e apartado da realidade. E por isso urge ao Direito Administrativo enfocar e discorrer sobre temas como as tradicionais e novas modelagens jurídicas que procuram viabilizar a contratação da inovação tecnológica pela Administração Pública, entre vários outros.

Cumpre noticiar que em 28 de abril de 2020, foi editado o Decreto nº 10.332, o qual instituiu a Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Dentre as inúmeras disposições do decreto, deverá ser criado em todos os órgãos públicos um Comitê de Governança Digital, para deliberar sobre assuntos relativos à implementação das ações de governo digital e ao uso de recursos de tecnologia da informação e comunicação.

Assim, à luz do Direito Administrativo, percebe-se claramente que temas como a contratação da inovação tecnológica demanda avançarmos todos no percurso da geração de novas tecnologias jurídicas, novas modelagens negociais e parcerias de ponta que incentivem a contratação nesta área e com estes objetos tão específicos, a partir de melhores parâmetros de regulação, segurança e eficiência jurídicas. Contudo, para além da inovação legislativa, precisamos de debates que proponham reflexões jurídicas mais qualificadas, verticalizadas e interdisciplinares sobre a inovação tecnológica na gestão pública, reformatando-se o mind set do setor público frente aos desafios típicos da Era Digital.

Nesse sentido, é inegável que o setor público vem estimulando o desenvolvimento de incubadoras e experimentos de gestão nessa temática, mas que acaba encontrando limites operacionais na legislação hoje vigente no país, com destaque para a Lei de Inovação (Lei federal nº 10.973/04) – mormente quando interpretada em harmonia com a Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei federal nº 8.666/93).

Igualmente, o tema da segurança dos dados e informações no espaço cibernético encontra-se na Agenda da Administração Pública, sobretudo na observância da LGPD (Lei federal nº 13.709/18). E para além do direito posto, temos projetos de lei importantes atualmente sendo gestados no Parlamento, com especial menção ao PLP nº 146/2019, que trata do Marco Legal das Startups. Entendo essencial este projeto de lei, por exemplo, porque (i) a prestação de serviços ao Poder Público pelas GovTechs – que têm um oceano de oportunidades para atuar – poderá ser melhor estimulado, e (ii) novos modelos de contratação tecnológica podem surgir, como o “termo de colaboração para teste de inovação”, e tudo isso poderá ser bem aproveitado pelo setor público.

No setor público, um bom estudo de caso de mobilização em torno desta temática, é o que vem acontecendo no Judiciário, que assumiu posição de pioneirismo incontestável – mormente quando comparado ao Legislativo e ao Executivo – no uso e gestão da inovação tecnológica de ponta. A precursora informatização do processo judicial (Lei federal nº 11.419/06), a política judiciária de inovação tecnológica promovida pelo CNJ, seja (i) para estabelecer diretrizes para as contratações de Solução de Tecnologia da Informação e Comunicação pelos órgãos submetidos ao seu controle administrativo e financeiro (Resolução CNJ nº 182/13), (ii) criar o  Centro de Inteligência Artificial (Portaria nº 25/19) ou mais recentemente, (iii) instituir o DataJud – Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, base única que reunirá informações mais detalhadas de cada processo judicial (Resolução CNJ nº 331/20), são exemplos muito significativos do estágio maduro que o tratamento da matéria alcança hoje Judiciário.

No âmbito do Governo Federal, o tema vem sendo tratado pelo Ministério da Economia, por meio da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital-SEDGG, o que revela a essencialidade da matéria, vinculada em termos de ações e políticas públicas voltadas à desburocratização e simplificação administrativas.

Assim, urgente pavimentar no Direito Administrativo o “caminho da inovação no setor público”, a grande chave para o desenvolvimento econômico e social do Brasil no mundo de hoje, o que certamente impulsionará sobremaneira que possamos ingressar de verdade no Século 21.

Gustavo Justino de Oliveira

Professor Doutor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP e do IDP (Brasília). Árbitro, advogado e consultor em Direito Público. [email protected]

Fonte: Lexlatin


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