Direito

Lei dos apps transfere competência da União para municípios


No dia 26 de março, o presidente Michel Temer sancionou a Lei Federal nº 13.640, de 2018 destinada a regulamentar no âmbito da Política Nacional de Mobilidade Urbana o denominado “transporte remunerado privado individual de passageiros”.

Em meio a muita polêmica, Câmara dos Deputados e Senado Federal concordaram, ao final dos debates legislativos, acerca de vários aspectos sobre qual deveria ser o melhor tratamento normativo para os serviços de transporte prestados por motoristas particulares intermediado por aplicativos do tipo Uber, 99Pop e Cabify, agora disciplinados na Lei Federal nº 12.587/12 (Política Nacional de Mobilidade Urbana – PNMU) como “serviços remunerados de transporte de passageiros, não aberto ao público, os quais são solicitados exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede” (art. 4º, inc. X).

Todavia, um ponto considerado essencial não somente para a regulamentação desse serviço, mas sobretudo para a sua viabilidade e sustentabilidade, encontra-se fulminado por vício de inconstitucionalidade. Refiro-me ao art. 11-A, hoje inserido na PNMU, segundo o qual “compete exclusivamente aos Municípios e ao Distrito Federal regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros previsto no inciso X do art. 4º desta Lei no âmbito dos seus territórios”.

É estreme de dúvidas que as inovações tecnológicas consideradas disruptivas – aquelas que alteram significativamente o modo pelo qual diversos serviços costumavam ser prestados ao público – comportam diferentes modelos de regulação, acompanhados de distintos matizes e intensidades de intervenção estatal na estruturação e funcionamento desses serviços.

Contudo, ainda que haja justificada discricionariedade ao legislador na escolha do melhor tratamento jurídico-normativo a ser conferido à matéria, deve-se buscar razoabilidade e coerência nesta escolha legislativa, a qual ainda deverá estar rigorosamente alinhada com o texto constitucional. E nada disso foi respeitado pelo Legislativo ao aprovar a redação final do recente art. 11-A da PNMU.

Em primeiro lugar, o referido artigo é inconstitucional porque atenta contra o art. 22, incisos XI, da Lei Maior, ao estabelecer que Municípios e Distrito Federal detém competência exclusiva para regulamentar e fiscalizar os serviços de transporte privado individual remunerado. Reservou-se aos Municípios e ao Distrito Federal uma parcela de competência que, por força constitucional, coube à União Federal (competência privativa para legislar sobre trânsito e transporte). Pior ainda, é possível que Municípios e Distrito Federal também se avoquem competência para legislar ou regular questões tecnológicas sobre a organização dos aplicativos e plataformas digitais – sequer contempladas no texto da lei e, na verdade, objeto de regulação do Marco Civil da Internet –  o que também contraria uma competência privativa da União (inciso IV do artigo 22 da Constituição).

Se a Constituição Federal reconhece à União a competência privativa para legislar sobre o tema, não é juridicamente permitido que uma lei, ainda que promulgada pela própria União, outorgue aos Municípios ou ao Distrito Federal a exclusividade do exercício de uma competência que lhe é própria. Tal dispositivo representaria uma espécie de renúncia de competência, sendo totalmente inconstitucional (STF, 2ª Turma, RE 313.060, j. 29-11-2005).

Esta linha de raciocínio nos leva a um segundo motivo pelo qual o art. 11-A da Lei federal nº 13.640/18 é inconstitucional. A partir dos debates legislativos, deduz-se que uma das principais finalidades intentadas com a explicitação da competência exclusiva aos Municípios e ao Distrito Federal é a suposta permissão para que esses entes federados possam limitar referida atividade de alguma maneira.

Todavia, como a competência para regulamentar não pode confrontar a competência constitucional da União Federal para legislar sobre trânsito e transporte, os Municípios jamais poderão estabelecer regulamentações limitadoras da atividade econômica em si, que resultem em obstáculo ou impedimento da realização do transporte remunerado privado individual de passageiros.

Mais grave ainda: ao reconhecer aos Municípios esta competência exclusiva, o dispositivo acaba por confundir a prestação de serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros, que é uma atividade econômica em sentido estrito, com a prestação de serviço público de interesse local, esta sim submetida constitucionalmente à organização municipal, eventualmente passível de restrição quantitativa.

No mais, há que se registrar que a simples previsão normativa de competência municipal para a regulamentação dos serviços de transporte é redundante, pois o inciso I do artigo 18 da PNMU já prevê como atribuição do Município o ato de “promover a regulamentação dos serviços de transporte urbano”. Perceba-se, no entanto, que não há previsão de competência “exclusiva”, justamente porque tal regulamentação depende também do exercício privativo da competência legislativa da União para disciplinar o serviço de transporte. Ou seja o atual art. 11-A da PNMU choca-se com o art. 18, I, do mesmo diploma legal, evidenciando que esta alteração legislativa gera uma grave antinomia, realçando a sua natureza inconstitucional.

Um terceiro argumento pela inconstitucionalidade do atual art. 11-A é que, em decorrência do hoje art. 4º, X, da PNMU, o serviço passível de regulamentação exclusiva dos Municípios e do DF poderia extrapolar a simples atividade material de transporte privado individual de passageiros, pois engloba também as atividades tecnológicas necessárias e relacionadas à solicitação e ao cadastramento de usuários em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede. Aqui parece importante notar que esta Lei trata unicamente de transporte, e não de aplicações de internet, matéria regulamentada pela Lei Federal n. 12.965/14 (Marco Civil da Internet), nada tendo o Município e o DF a legislar ou regulamentar.

Finalmente, ainda que os Municípios detenham competência para legislar sobre assuntos locais, tal competência, no máximo, se restringe a apenas uma parcela da atividade de transporte remunerado privado individual de passageiros, nos termos fixados nos artigos 11-A e 11-B da PNMU. O poder regulamentar aqui só pode ser entendido como aquele que pretende dar fiel cumprimento à lei no âmbito local. Entendimento distinto pode significar ofensa frontal a princípios elementares da ordem econômica na Constituição Federal, especialmente o princípio da livre iniciativa (inciso IV do artigo 1º e artigo 170), da valorização do trabalho humano (artigo 170), da liberdade de exercício da profissão (inciso XIII do artigo 5º) e da livre concorrência (inciso IV do artigo 170).

Assim, não há quaisquer justificativas para que uma lei reconheça expressamente aos Municípios e ao Distrito Federal uma competência “exclusiva” para regulamentar e fiscalizar uma matéria que por força constitucional não existe, razão pela qual é legítimo acionar imediatamente o Poder Judiciário para que declare a inconstitucionalidade do novo art. 11-A da Lei Federal n. 12.587/12, inserido pela Lei Federal nº 13.640/18.

Publicado em: JOTA


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