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Regular sim, retroceder jamais


A mobilidade urbana costuma ter posição de destaque nos debates a respeito de cidades mais inteligentes. Afinal, todas as metrópoles no mundo enfrentam desafios para diminuir os índices de congestionamentos e oferecer opções de transporte com qualidade. E não é simples elaborar soluções para cidades adensadas em que a maioria das pessoas faz pelo menos dois deslocamentos diariamente.

Certamente, a tecnologia é uma aliada nessa empreitada. Sensores de movimento, georreferenciamento e análise de dados podem contribuir para melhorar o funcionamento das cidades. Hoje, aplicativos de intermediação de transporte individual, como a 99, já auxiliam a otimizar o fluxo do trânsito.

Como um mesmo carro de aplicativo é usado intensamente – já que ele atende a várias pessoas ao longo do dia e, em alguns casos, a mais de um passageiro ao mesmo tempo –, torna-se cada vez menor a necessidade de se comprar um carro próprio, assim como diminui a quantidade de veículos circulando pelas ruas. Esse fato é uma clara demonstração da economia colaborativa, já que as pessoas deixam de possuir um bem, mas continuam utilizando-o de maneira compartilhada.

A praticidade dos aplicativos também tem sido muito útil para passageiros acessarem redes estruturais de transporte. Os cidadãos que dependem do transporte público em horários de maior demanda ou os que residem em lugares onde o transporte é deficiente podem utilizar os aplicativos para suprir e complementar essa necessidade. Estudos da própria 99 indicam que, em média, um quinto de todas as corridas é realizado por pessoas que desejam ir até uma estação de metrô ou de trem ou a um terminal de ônibus.

Além dos efeitos benéficos para o trânsito, que acabam por beneficiar todos os habitantes das cidades, os aplicativos de mobilidade também possuem relevante papel socioeconômico. Por meio dele, milhares de motoristas em várias cidades conseguem potencializar seus ganhos ao final de cada mês, sejam eles a principal fonte de renda ou um acréscimo importante para compor o rendimento.

BENEFÍCIOS PARA A SOCIEDADE

Por todos esses aspectos foi muito importante consolidar a normatização do setor. No final de março, após ter tramitado por cerca de dois anos no Congresso Nacional, o Projeto de Lei (PL) 5.587, que regulamenta o transporte remunerado privado individual de passageiros, foi sancionado pelo presidente da República Michel Temer. “Com isso, agora, há uma segurança jurídica importante que resolve de forma definitiva a questão da continuidade dos serviços de transporte particular remunerado por meio de aplicativos”, diz o deputado federal Daniel Coelho (PPS-PE), relator do PL 5.587. “A sanção presidencial é um grande avanço para a sociedade, pois esses serviços representam um impacto na vida das pessoas, tanto na renda dos motoristas como na questão da mobilidade urbana, pois se consolidaram como alternativa de transporte para a população de muitas cidades brasileiras”, analisa o deputado. O texto corretamente oferece liberdade aos motoristas de exercerem o direito legítimo de trabalhar. Na redação final, retiraram-se artigos que limitariam a atuação dos milhares de motoristas e tirariam deles oportunidade de gerar renda para suas famílias. Foram excluídas, por exemplo, a obrigatoriedade de os carros terem placa vermelha e a restrição de se trabalhar apenas na cidade em que o motorista emplacar o seu veículo.

A nova norma também garante a segurança de passageiros e motoristas, já que a Lei no 13.640 de 2018 concede aos municípios e ao Distrito Federal a possibilidade de regulamentar alguns aspectos operacionais do serviço que constam dos artigos 11-A e 11-B, como exigência de contratação de seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP) e do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT), obrigatoriedade de inscrição do motorista como contribuinte individual do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), exigência de Carteira Nacional de Habilitação adequada à prestação de atividade remunerada, estabelecimento de uma idade máxima do veículo, requerimento de certificado de registro e licenciamento do carro, além de apresentação de Certidão Negativa de Antecedentes Criminais do motorista.

Apesar da legislação federal em vigor, diversos agentes públicos Brasil afora começam a ensaiar movimentos para regular o serviço além da competência que lhes foi atribuída pela lei federal e, sobretudo, pela própria Constituição Federal. Gestores de algumas cidades passaram a defender medidas que praticamente inviabilizam os motoristas de continuarem a trabalhar por meio das plataformas de mobilidade. “Tentar impor restrições, como o uso da placa vermelha ou a obrigatoriedade de o motorista emplacar seu veículo na cidade em que vai trabalhar, contraria o sentido da legislação aprovada pelo Congresso, que pretende garantir os direitos de os motoristas trabalharem sem entraves e burocracias excessivas”, afirma Gustavo Justino de Oliveira, professor de Direito Administrativo da USP.

Além disso, a própria lei federal discrimina quais os pontos aptos à regulação municipal no artigo 11-B, complementados pelo que já está disciplinado no artigo 11-A. Regulações locais que excedam as matérias já elencadas pela lei e aptas à regulação não só são contrárias à lei como também violam frontalmente regras de competência legislativa e princípios importantes da Constituição Federal, como o direito de exercer o seu trabalho, a livre iniciativa e a livre concorrência.

Dessa forma, regulações que pretendam, por exemplo, criar um limite de veículos cadastrados em aplicativos que podem circular simultaneamente na cidade são ilegais e inconstitucionais. Falta sentido em tal medida, já que existe uma elevada rotatividade dos motoristas: eles entram e saem da plataforma frequentemente ao longo de um mesmo dia, de acordo com sua necessidade de trabalho e disponibilidade de tempo.

Em São Paulo, por exemplo, os veículos da 99 representam menos de 1% de todos os carros que trafegam nas ruas, durante os períodos de pico da manhã e da tarde. Além disso, sem uma oferta razoável de motoristas disponíveis, não faria mais sentido usar o aplicativo como ferramenta de economia colaborativa. Hoje, as pessoas só deixam de comprar veículo próprio porque sabem que encontrarão serviços que as atenderão com rapidez e agilidade por meio da intermediação das plataformas.

MENOS AMARRAS

Os legisladores municipais, muito possivelmente, têm se baseado no artigo 11-A da mesma legislação federal para propor regulamentações mais amplas. No entanto, tal dispositivo deve ser lido e interpretado de maneira sistemática e à luz da Constituição Federal, sob pena de ser considerado inconstitucional. Se o artigo 11-A for interpretado como uma delegação de competência legislativa exclusiva para municípios e o Distrito Federal com relação ao serviço remunerado de transporte privado individual de passageiros, estaríamos diante de uma afronta ao artigo 22, inciso XI da Constituição Federal, que diz: “compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte”. De acordo com o professor Gustavo Justino, a lei é muito clara: “Os municípios não têm competência para regular sobre esse tipo de serviço”.

Assim, o artigo 11-A deve ser interpretado em conformidade com a Constituição Federal: compreende-se que o poder de regulamentação dos municípios e do Distrito Federal diz respeito à fiel implementação e execução da Lei Federal no âmbito local, vinculado ainda aos princípios que informam a Política Nacional de Mobilidade Urbana, bem como o próprio serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros. Em outras palavras, os municípios devem trabalhar para colocar em prática a legislação federal e executar a correta fiscalização dos serviços, mas devem fazê-lo sem a inclusão de elementos estranhos àquilo que a lei federal já dispôs.

“Quanto menos ingerência houver nesses serviços, melhor. Esse mercado é muito dinâmico, e a tecnologia avança a todo instante. Hoje, há poucos aplicativos que oferecem esses serviços. Mas, daqui a alguns anos, dezenas de start-ups estarão em plena atividade, o que será ótimo para o consumidor. E a lei nem sempre tem a mesma velocidade para se adaptar às repentinas mudanças da realidade. Portanto, quanto menos amarras, melhor”, comenta o deputado federal Daniel Coelho.

Fonte: Estadão


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